quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Boate Kiss desrespeitou artigos de leis estadual e municipal




Por:Márcio Luiz e Roberta Lemes
Do G1 RS

A boate Kiss desrespeitou pelo menos dois artigos de leis estadual e municipal no que diz respeito ao plano de prevenção contra incêndio. Tanto a legislação do Rio Grande do Sul quanto a de Santa Maria listam exigências não cumpridas pela casa noturna, como a instalação de uma segunda porta, de emergência. A boate situada na Rua dos Andradas tinha apenas uma, por onde o público entrava e saía. No domingo (27), o incêndio durante uma festa universitária deixou 235 mortos.
Outra medida que não foi cumprida na estrutura da boate diz respeito ao tipo de revestimento utilizado como isolamento acústico, que foi onde, segundo testemunhas, o incêndio começou. A perícia ainda não informou o tipo de material utilizado, mas relatos de sobreviventes apontam que a espuma usada pegou fogo muito rápido.
A Lei Municipal 3301/91, datada de 22 de janeiro de 1991, diz, no artigo 17: “É vedado o emprego de material de fácil combustão e/ou que desprenda gases tóxicos em caso de incêndio, em divisórias, revestimento e acabamentos” em “estabelecimentos de reunião de público, cinemas, teatros, boates e assemelhados”.
Em relação às portas, a legislação estadual determina claramente a exigência ao menos de duas portas de entrada e saída em estabelecimentos públicos. Em nota na noite de terça-feira (29), a Brigada Militar afirmou que a boate entregou laudo afirmando ter duas saídas de emergência.
O decreto nº 38.273, de 9 de março de 1998, altera as Normas Técnicas de Prevenção de Incêndios, aprovada em 29 de abril de 1997. Ele diz que “as saídas de emergência são obrigatórias nas edificações previstas na NBR 9.077, da ABNT, e deverão obedecer às regras ali previstas”. A norma citada da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) considera obrigatória a existência de uma segunda saída, a porta de emergência.
O texto da lei municipal não deixa claro se casas noturnas devem ter mais de uma saída, a não ser pelo termo no plural no artigo 18, que descreve os tipos de materiais a serem empregados: “As portas resistentes ao fogo deverão possuir o selo de marca da ABNT e serão dentro das seguintes especificações: I – porta P-60, para acesso às saídas ou escadas de emergência com antecâmara, devendo, neste caso, a antecâmara ter duas P-60; II – porta P-90, para acesso direto à saída ou escada de emergência fazer-se através de uma única P-90, como nas escadas enclausuradas sem antecâmaras”.
O promotor de Justiça aposentado e professor universitário João Marcos Adede y Castro diz que a hierarquia da lei é muito clara: a federal se sobrepõe à estadual, que por sua vez se sobrepõe à municipal. No entanto, na ausência de uma regulamentação em instância superior, o município pode legislar sobre qualquer assunto. “Não havendo leis federais ou estaduais que determinem regras específicas, cada cidade pode e deve criar meios reguladores. Mas havendo tais leis, prevalece a hierarquia”, esclarece.
Para o promotor, acima de qualquer determinação jurídica, deve imperar o bom senso. “Os princípios gerais da Constituição Brasileira asseguram ao cidadão o direito à segurança e isso é o mais importante. Neste caso de Santa Maria, mesmo as autoridades dizendo que tudo estava regular, me parece evidente que um local com capacidade para quase mil pessoas necessitava de mais uma saída. Se o fogo começasse na porta, por onde as pessoas sairiam? Nenhuma legislação resiste ao bom senso”, afirma ele.
Relator dos projetos que resultou na lei estadual anti-incêndio e nos decretos posteriores, o tenente-coronel Nelson Matter, do Corpo de Bombeiros, diz que em muitos municípios do estado os bombeiros e as prefeituras fazem vista grossa para a legislação estadual. “A regra é aplicar a lei estadual, mas muitos municípios têm leis municipais contra incêndio mais antigas, às vezes muito menos rígidas, que acabam sendo seguidas. Há muita resistência e problemas para que sejam feitas as mudanças solicitadas pelos bombeiros. É como pedir para colocar airbag em um fusca”, exemplifica o coronel.
Na reserva há cerca de dois anos depois de 35 de serviços prestados, o tenente-coronel Nelson Matter manifestou solidariedade com o colega de profissão, o major Gerson Pereira. Nesta terça-feira (29), o chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional do Corpo de Bombeiros recebeu muitas críticas ao afirmar os bombeiros não foram negligentes ao vistoriar a boate que não era “competência” da instituição verificar o tipo de revestimento acústico utilizado. “Fiquei com pena dele. Os bombeiros têm de lidar com um emaranhado de leis e sofrem pressão de todos os lados para conceder os alvarás. São prefeituras, políticos, conselhos de engenharia e arquitetura e empresários”, diz.
Em comunicado à imprensa nesta terça-feira (29), o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, eximiu o Executivo Municipal de responsabilidade sobre a tragédia. Ele afirmou que o processo de renovação do alvará da boate Kiss, vencido em agosto de 2012, estava em processo de renovação e que a próxima vistoria estava prevista para abril. Em nota, a prefeitura também afirma que cabia ao Corpo de Bombeiros a vistoria anual, análise e aprovação do Projeto de Prevenção contra Incêndio (PPCI) da casa noturna, bem como a fiscalização do número de freqüentadores do estabelecimento.
Também por meio de nota, a Brigada Militar afirmou que o proprietário da boate Kiss solicitou a inspeção para renovação do alvará de prevenção e proteção conta incêndio em novembro de 2012 e que o processo estava em tramitação. Nessa situação, diz o texto, “não há previsão legal para interdição imediata determinada pelo Corpo de Bombeiros, cuja competência é limitada às questões relacionadas ao sistema de prevenção de incêndio”.
A Brigada Militar também afirma que o PPCI apresentado pelo responsável técnico contratado pela boate Kiss informava que a boate tinha “duas saídas de emergência, cujas portas possuíam sentido de abertura para fora, dotadas de barras anti-pânico e devidamente sinalizadas”. Além disso, esse plano previa a lotação máxima de 691 pessoas e que a superlotação (mais de mil pessoas estavam na boate no momento do incêndio) é de responsabilidade dos proprietários.

Investigação da tragédia
O delegado regional de Santa Maria (RS), Marcelo Arigony, afirmou em entrevista coletiva na tarde desta terça-feira (29) que a banda Gurizada Fandangueira utilizou um sinalizador mais barato, próprio para ambientes abertos e que não deveria ser usado em local fechado, durante o show na boate Kiss, em Santa Maria (RS). O equipamento teria provocado o incêndio que deixou 234 mortos na madrugada de domingo (27).
O delegado Marcelo Arigony elencou uma série de elementos que contribuíram para que a tragédia ocorresse, como falhas na iluminação de emergência, espuma inadequada para recobrir a danceteria, além de extintores irregulares.
Segundo Arigony, o extintor de incêndio que estava na boate e falhou quando os seguranças tentaram apagar o fogo pode ser falsificado.“Segundo testemunhas e provas preliminares, os extintores podem ser falsos, pois não estavam funcionando, não funcionavam direito”, disse.

Incêndio e prisões
O incêndio começou por volta das 2h30 de domingo (27), durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que utilizou sinalizadores para uma espécie de show pirotécnico.
Segundo relatos de testemunhas, faíscas de um equipamento conhecido como "sputnik" atingiram a espuma do isolamento acústico, no teto da boate, dando início ao fogo, que se espalhou pelo estabelecimento em poucos minutos.
Quatro foram presos nesta segunda-feira após a tragédia: o dono da boate, Elissandro Calegaro Spohr, o sócio, Mauro Hofffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que fazia um show pirotécnico que teria dado início ao incêndio, segundo informações do delegado Sandro Meinerz, responsável pelo caso.
Em depoimento, Spohr afirmou à Polícia Civil que sabia que o alvará de funcionamento estava vencido, mas que já havia pedido a renovação.
O advogado Mario Cipriani, que representa Mauro Hoffmann, afirmou que o cliente "não participava da administração da Kiss".
Na manhã de segunda, outros dois integrantes da banda falaram sobre a tragédia. "Da minha parte, eu parei de tocar", disse o guitarrista Rodrigo Lemos Martins, de 32 anos.
Por meio dos seus advogados, a boate Kiss se pronunciou sobre a tragédia, classificando como "uma "fatalidade".

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