Uma decisão inédita do Tribunal de Justiça do Amapá transformou uma instituição financeira, de autora de processo de busca e apreensão a réu no mesmo processo. Em 2006, o funcionário público Manoel Everdosa Martins adquiriu um veículo financiado pelo Banco Volskwagen S/A em 63 parcelas de R$ 1.100,53.
Depois de pagar 56 parcelas, algo em torno de R$ 61 mil, o consumidor (que já é sexagenário) adoeceu e atrasou as últimas parcelas. Em outubro de 2011, o banco Volskwagen entrou com ação de busca e apreensão cobrando as parcelas restantes e conseguiu na justiça o direito de apreender o bem. Mesmo com dificuldades, o servidor público pagou toda a dívida em dois depósitos judiciais, mas só recebeu o carro cerca de um mês depois, todo avariado, sem o aparelho de toca CD e com amassados nos para-choques traseiro e dianteiro. Pior: o veículo já tinha sido mandado pelo banco Volskwagen para Belém.
Manoel Martins questionou na justiça a atitude do banco. A juíza Liege Cristina Gomes proferiu sentença e condenou o banco a pagar R$ 16.300,00 de indenização. O banco Volskwagen recorreu da decisão junto ao pleno do TJAP, mas a decisão foi mantida.
Agora, Manoel Martins luta para receber a indenização e para conseguir desalienar o veículo. É que, mesmo tendo pago as 63 parcelas do contrato, em represália pela condenação, quase dois anos após a quitação da dívida, o banco Volskwagen não desalienou o veículo. Além disso, o banco já perdeu todos os prazos de recurso estipulados pela justiça.
Na Automoto, concessionária onde funciona um posto do banco Volskwagem, um funcionário que preferiu não se identificar, explicou que em casos como este, o banco adota a postura de manter o veículo alienado, uma forma de pressionar o consumidor a desistir da ação. Para Manoel Martins, no entanto, a justiça foi feita.
Eis a decisão da juíza:
Magistrado: LIEGE CRISTINA DE VASCONCELOS RAMOS GOMES
Teor do Ato:
BANCO VOLKSWAGEN S/A, por advogado regularmente habilitado, aforou a presente AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO em relação a MANOEL EVERDOSA MARTINS, alegando, em síntese, ter firmado contrato de abertura de crédito para aquisição do veículo marca/mod. FOX HATCH 1.0 8V (CITY) (TOTAL FLEX), ano/mod. 2006/2006, chassi nº 9BWKA05Z164171568, placa NEU-6884, no valor nominal de R$ 36.595,00 (trinta e seis mil, quinhentos e noventa e cinco reais), para ser pago em sessenta e três (63) parcelas fixas, mensais e consecutivas, de R$ 1.100,53 (um mil, cem reais e cinquenta e três centavos) cada.
Acrescentou que, em garantia da dívida assumida, o réu transferiu-lhe o domínio resolúvel e a posse indireta do bem acima referido, tornando-se, assim, enquanto devedor, possuidor direto e fiel depositário do bem acima descrito.
Advertiu, ademais, que o réu tornou-se inadimplente com suas obrigações contratuais, ao deixar de pagar as parcelas vencidas e vincendas, razão pela qual foi devidamente constituído em mora.
Assim é que, como credor fiduciário, e por força dos ditames do Decreto-Lei nº 911/1969 e da Lei Federal nº 10.931/2004, comprovados o inadimplemento contratual e a mora do devedor, pediu a concessão de liminar de busca e apreensão do bem descrito, e, ao final, fossem julgados procedentes os pedidos constantes da exordial, resolvendo o contrato firmado entre as partes e consolidando a posse e a propriedade do referido bem em seu favor.
Instruiu a inicial com os documentos de fls. 05/45.
O pedido de liminar foi deferido em decisão vazada à f. 46.
Por mandado encartado às fls. 61/62, o bem objeto da fidúcia foi devidamente apreendido, conforme auto de busca e apreensão e termo de vistoria de fls. 63/64.
Regularmente citado, o réu apresentou contestação ao feito (fls. 47/59), onde sustentou, em resumo, a prática de anatocismo e capitalização de juros pela instituição financeira autora, além do que noticiou que o atraso no pagamento das prestações objeto desta ação deveram-se ao gravíssimo estado de saúde porque passara, inclusive, com comprovada intervenção cirúrgica, circunstância especial que, aliada ao fato de já haver pago cinquenta e seis, das sessenta e três parcelas do contrato de financiamento, levou este Juízo a designar audiência de tentativa de conciliação para o dia 20.10.2011, às 12 horas, oportunidade em que o réu demonstrou o depósito judicial da quantia de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) (f. 69) e comprometeu em depositar o restante, R$ 2.342,33 (dois mil, trezentos e quarenta e dois reais e trinta e três centavos), em 16.11.2011, no entanto, o fez de modo antecipado, em 10.11.2011 (f. 105), importâncias estas que, somadas, correspondem às sete parcelas últimas do referido contrato, equivalendo, pois, à sua liquidação.
Com o depósito da primeira parte das parcelas, o magistrado que presidiu o ato determinou a devolução, pelo autor, do bem fiduciariamente alienado, ao réu, em até quarenta e oito horas, providência obstada em face da noticiada transferência do veículo para a Cidade de Belém do Pará, o que ensejou no estabelecimento do prazo de cinco dias para cumprimento da determinação, sob pena de incidência, a partir daí, de multa cominatória e diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), na hipótese de descumprimento. A intimação pessoal a tanto deu-se através do mandado de intimação encartado às fls. 107/108, em 21.11.2011, com expiração de tal prazo em 28.11.2011, só se tendo notícias da efetiva entrega do bem, ao réu, na data de 12.12.2011, conforme declaração juntada pelo autor à f. 114 dos autos, ainda assim, contendo algumas avarias, tais quais, amassados nos parachoques dianteiro e traseiro e falta do equipamento de DVD então instalado no veículo pelo réu, prejuízos de ordem material que importaram na cifra de R$ 2.300,00 (dois mil e trezentos reais), conforme notas fiscais juntadas às fls. 115/116.
Assim é que, em petição encartada às fls. 112/116, o réu exigiu o pagamento da multa cominatória, no importe de R$ 14.000,00 (catorze mil reais), correspondente ao período em que a autora recalcitrou em cumprir a decisão de devolução do bem outrora apreendido (29 de novembro a 12 de dezembro de 2.011), bem assim das perdas e danos advindas do prejuízo suportado em razão de condutas praticadas pelos prepostos do autor quando o bem ainda estava em seu poder, tais como amassados nos parachoques dianteiro e traseiro e retirada do aparelho de DVD que estava instalado no veículo quando de sua entrega ao banco, no valor de R$ 2.300,00 (dois mil e trezentos reais), na quantia total de R$ 16.300,00 (dezesseis mil e trezentos reais).
É o relatório. Fundamento, e, por fim, decido.
Tratam os autos de ação de busca e apreensão fundada nas disposições do Decreto-Lei nº 911/69, que permite ao credor fiduciário, diante do inadimplemento e mora do devedor fiduciante, pleitear a busca e apreensão do bem objeto da alienação fiduciária, além da resolução do contrato firmado entre ambos, com a consolidação, em nome do credor, da posse e propriedade da coisa alienada.
Primeiramente, cumpre-me afirmar que não vejo nulidades a sanar ou irregularidades a suprir, asseverando, por outro lado, que se encontram atendidos os pressupostos processuais e presentes as condições da ação.
O processo, no estágio em que se encontra, autoriza o julgamento antecipado da lide, isso porque o réu, logo que citado, embora tenha apresentado contestação sob a alegação de prática de anatocismo e capitalização de juros no contrato de financiamento, apressou-se em efetivar o pagamento das parcelas em atraso, reunindo prova documental demonstrativa do regular pagamento de todas as parcelas do contrato de financiamento com cláusula de alienação fiduciária em garantia. Exerceu, assim, a faculdade de tempestiva purgação da mora.
Ora, o interesse do credor fiduciário está umbilicalmente ligado à configuração da mora do devedor em uma ou algumas das parcelas do contrato de financiamento pelo qual se obrigou, circunstância bastante a ensejar o vencimento antecipado de todo o contrato, seguido do aviamento de pretensão de busca e apreensão, com final rescisão contratual e consolidação da posse e do domínio em seu favor.
Ocorre que, tendo o réu incorrido em mora no pagamento das parcelas nºs. 57 a 60/63, por meio dos comprovantes constantes das fls. 69 e 105 dos autos, efetuou o depósito judicial da quantia correspondente, demonstrando, com isso, interesse na preservação do negócio jurídico celebrado com o autor. Não só isso. Também comprovou o tempestivo pagamento de todas as demais parcelas vencidas no curso da lide, inclusive custas e honorários, correspondentes à liquidação do contrato.
Assim, lastreado no princípio da razoabilidade e na função social dos contratos, devem os litigantes buscar uma solução à continuidade do vínculo contratual, não sua imediata rescisão, com o vencimento antecipado da dívida, circunstância que, à toda evidência, inviabiliza, em casos tais, a purgação da mora no exíguo prazo de cinco (05) dias, acarretando enormes prejuízos ao consumidor, parte marcadamente hipossuficiente e vulnerável nessa relação.
Dito isto, outros dois aspectos a serem salientados nesta sentença referem-se à multa cominatória imposta com o objetivo de compelir o autor à entrega do bem financiado e às perdas e danos suportados pelo réu quando de seu recebimento, eis que, além de conter diversos amassados na lataria dos parachoques dianteiro e traseiro, foi-lhe devolvido sem o equipamento de DVD.
Pois bem. No que tange à multa cominatória, em consulta ao trâmite eletrônico e, também, ao processo físico, posso constatar, de maneira cristalina, que, tendo o autor sido pessoalmente intimado, por mandado, na data de 21.11.2011, à entrega, em cinco dias, do bem financiado, cujo termo, por dar-se em 26.11.2011 (sábado), prorrogou-se para o dia 28.11.2011, somente efetivou a correspondente entrega, ao réu, no dia 12.12.2011, conforme declaração emitida de próprio punho pelo preposto do autor responsável por sua guarda, daí porque tenho por legítima sua exigibilidade, contanto que após o trânsito em julgado desta sentença, pelo valor líquido e certo de R$ 14.000,00 (quatorze mil reais).
Já quanto às perdas e danos suportados pelo réu quando da entrega do veículo outrora apreendido pelo autor, consistente, como dito, em amassados nos parachoques dianteiro e traseiro, além de falta do aparelho de DVD, penso que, a partir do momento em que purgada a integralidade da mora pelo réu, a ele ficou automaticamente assegurado o direito de exigir a devolução do veículo descrito e caracterizado na exordial, inclusive de seus acessórios, já que, consistindo em obrigação de entrega de coisa certa, a exigibilidade do principal engloba todos os seus acessórios, pena de conversão em perdas e danos de eventuais prejuízos verificados na coisa quando ainda em poder do devedor, qual seja, seu depositário fiel. Nesse sentido, dúvida alguma paira de que o bem alienado, quando de sua devolução, o foi com algumas avarias, além da falta de alguns acessórios (DVD), prejuízos que, comprovadamente, atingiram a quantia de R$ 2.300,00 (dois mil e trezentos reais), conforme petição e documentos acostados às fls. 112/116 dos autos, passíveis de cobrança no bojo destes mesmos autos, seja porque prescinde de dilação probatória, seja ainda por economia e celeridade processual.
À luz dessas razões, e tendo em vista o que mais dos autos consta, confirmando os termos da decisão constante da f. 103, que arbitrou multa cominatória no importe de R$ 1.000,00 (um mil reais) ao dia de descumprimento da determinação de entrega do veículo ao réu, acumulando, por isso, em quatorze dias, o valor de R$ 14.000,00 (quatorze mil reais), homologo o reconhecimento da procedência do pedido, declarando extinto o processo sem resolução de mérito, a teor da regra estampada no inciso II do art. 269 do Código de Processo Civil, convertendo, quanto ao mais, em perdas e danos, os prejuízos suportados pelo réu quando da entrega do bem financiado, no importe de R$ 2.300,00 (dois mil e trezentos reais), totalizando tais obrigações o somatório de R$ 16.300,00 (dezesseis mil e trezentos reais).
Em consequência, face à sucumbência recíproca, arbitro, com fundamento no § 4º do art. 20 do Código de Processo Civil, a título de honorários advocatícios, a quantia de R$ 1.000,00 (um mil reais), respectivamente, para o procurador judicial do autor, tanto quanto para o procurador judicial do réu, cuja compensação, nos termos do art. 21 do aludido Código, desde já, fica determinada.
Cada qual das partes assumira cinquenta por cento do valor atinente às custas processuais finais.
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